PREFÁCIO
DOI:
https://doi.org/10.30681/relva.v8i1.5531Resumo
PREFÁCIO
A educação escolar foi implementada no denominado “Novo Mundo” como parte do projeto de colonização. Com a reforma pombalina, sob os ideais liberais iluministas, nas colônias portuguesas, explicitamente declarada no Diretório dos Índios, a missão da educação escolar era normatizar os comportamentos dos(as) colonizados(as) “para bem servirem à Nação”, prestando bons serviços a El Rey. Em outras palavras, o objetivo da educação escolar da população, nesse período, era preparar para o trabalho, qualificando a mão de obra.
Um dos processos adotados na construção/invenção da nação e adotados na escola, nos projetos de educação escolar colonial, para a formação das “boas almas”, foi o “memoricídio” (BAÉZ, 2010; TOLOSA, 2018). A população que foi sendo escolarizada, desde o período colonial, deveria deixar (esquecer) “seus antigos modos de vida”, os “modos selvagens” (DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS, 1757), isto é, suas vivências espirituais, sagradas, seus vínculos com a natureza, suas línguas, seus conhecimentos etc., e aprender os novos modos, a “língua do Príncipe”, os conhecimentos reais e a religião cristã católica. O “memoricídio” ainda é uma estratégia de colonialidade do ser e de dominação dos povos, portanto, também de colonialidade do poder.
Na perspectiva colonial, no “Novo Mundo”, não havia línguas nem conhecimentos válidos. A escola se instruiu (e segue se instruindo) ancorada na hierarquia binária de estruturação do mundo euro-colonial para “civilizar” os “gentios” da terra. Essa ainda é uma lógica subjacente à educação escolar: quem sabe, o(a) que detém a língua, o conhecimento e a religião legitimados pelo Estado (o “Príncipe”) e por ideologias legitimadas (Igreja, família etc.) ensina aos(às) que não têm língua, nem conhecimento nem religião legitimados.
A estrutura colonial, ancorada na patriz euro-cristã moderna, é a base da educação escolar hegemônica: ensino-aprendizagem, professor/educador-aluno/educando. De um lado, estão os seres/corpos, as línguas e os conhecimentos modernos coloniais válidos, dignos da escola; de outro, as línguas e os conhecimentos que devem ser esquecidos. Essa estrutura, por ainda persistir na educação escolar, é uma das formas de manutenção da colonialidade epistêmica e da colonialidade do poder.
O desafio da educação escolar contemporânea para desestabilizar a colonialidade do poder (QUIJANO, 2010) em seu conjunto – colonialidade da linguagem, colonialidade do ser, colonialidade epistêmica (CASTRO-GOMEZ; GROSFOGUEL, 2007) etc. – é pela implementação de uma efetiva educação intercultural que busque superar o memoricídio e a concepção epistemológica binária, monolíngue e monoepistêmica de ensino. O desafio é, enfim, o respeito à pluralidade, aceitando que no mundo caibam todos os mundos”, conforme defendem os zapatistas, ainda que em conflito ético. Nessa perspectiva, a interculturalidade é mais que um projeto, é mais que uma concepção ou um conceito teórico, é um “princípio ideológico” que fundamenta políticas educacionais.
Segundo Walsh (2007, p. 47), para os movimentos indígenas equatorianos, a interculturalidade é “um princípio ideológico”. A concepção de interculturalidade apresentada por Walsh vem de dentro dos movimentos sociais, políticos e étnicos, gestada pelos movimentos indígenas da América, especificamente do Equador e da Bolívia. Com isso, entenda-se que não se trata de um conceito teórico da academia, “para ser aplicado a determinados objetos ou ‘casos’ para a análise” (WALSH, 2007, p. 47). Entendida como um “princípio ideológico”, a interculturalidade é decolonial desde a origem e não pode ser reificado como conceito acadêmico, sob o risco de resultar em colonialidade epistêmica.
Como política educacional subsidiadora de projetos político-epistêmicos, a interculturalidade exige um planejamento que envolva políticas públicas para a educação, com responsáveis e sérios planejamentos linguístico, orçamentário e formativo. A formação docente é um fator decisivo de importante impacto na construção e implementação da educação intercultural. Em resumo, uma formação docente intercultural responsável é parte e vem antecedida por políticas pública também sérias, conforme referenciado anteriormente.
O currículo escolar é parte da política pública para a educação e é uma maneira de o Estado controlar o planejamento educacional e as práticas docentes, no sentido de direcionar o “espírito da nação”, como no Iluminismo. É pelo currículo que os conteúdos são selecionados e algumas epistemes, em detrimento de outras, são validadas para serem difundidas como as legitimadas. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitas conquistas, tais como as leis 10.436/2002, 10.639/2003, 11.645/2008, têm sido alcançadas. Apesar disso, muito ainda está por se construir, incluindo a efetiva implementação dessas leis.
Atualmente, as políticas públicas para a educação empreendidas pelo Estado apresentam mudanças orçamentárias e curriculares que precarizam as instituições públicas de ensino e comprometem as conquistas já alcançadas na construção de projetos de educação pública democrática, bilíngue e intercultural, conforme as instruções da LDB de 1996 com todas as modificações legais desde então até o momento. São instrumentos normativos, que representam a nova ordem governamental, com profundos impactos na educação escolar na diversidade, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica.
Para desestabilizar o projeto do governo, é fundamental se apropriar desses instrumentos normativos e fazer deles aliados no enfrentamento às políticas públicas que visam desviar e impedir a construção de projetos políticos epistêmicos para a educação intercultural brasileira. Para isso, é de suma importância promover espaços políticos e acadêmicos para o conhecimento e a discussão sobre esses instrumentos e seus impactos na educação nacional, sobretudo no que se refere à formação docente para e na diversidade, tendo a interculturalidade como princípio básico.
Nesse sentido, o dossiê temático “Interculturalidade e formação de professores(as): avanços e desafios”, organizado pela Prof.ª Dr.ª Marly Augusta Lopes de Magalhães (UFMT) e pelo Prof. Dr. Kécio Gonçalves Leite (UNIR), por um lado, é parte de uma política pública de base para o fortalecimento de uma educação escolar intercultural pluriepistemológica – plurilíngue e pluriepistêmica. Por outro lado, como a construção de um espaço para a reflexão e a problematização sobre a formação docente para e na diversidade, é a insurgência política de enfrentamento às políticas de precarização e desmonte da educação pública.
Este dossiê congrega artigos sobre os avanços e desafios da interculturalidade na formação inicial e continuada de professores e professoras no Brasil. Os artigos tratam de experiências e projetos de formação docente para a educação escolar indígena, a educação do campo e a educação quilombola, além da educação escolar em cumprimento às leis 10.436/2002, 10.639/2003 e 11.645/2008, que promovem a curricularização das temáticas sobre a cultura das pessoas subalternizadas, por meio do ensino de histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas na educação básica.
Dessa forma, este dossiê, por meio da formação docente e da divulgação de resultados de pesquisa e do compartilhamento de experiências, é uma forma de enfrentamento á colonialidade do poder para minimizar as diferenças coloniais dos grupos subalternizados pela colonização como o são os indígenas e os afro-brasileiros.